Maria Firmina dos Reis, mulher negra, amante da literatura, foi a primeira mulher romancista do Brasil, remodelando os moldes conjunturais patriarcais. Maria Firmina era uma abolicionista que tinha em seu coração muita compaixão, vindo a ensinar os pobres.
Negra, filha de mãe branca e pai negro, registrada sob o nome de
um pai ilegítimo e nascida na Ilha de São Luis, no Maranhão, Maria Firmina dos
Reis (1822 – 1917) fez de seu primeiro romance, Úrsula (1859), algo até
então impensável: um instrumento de crítica à escravidão por meio da
humanização de personagens escravizados.
“Em sua literatura, os escravos são nobres e generosos. Estão em
pé de igualdade com os brancos e, quando a autora dá voz a eles, deixa que eles
mesmos contem suas tragédias. O que já é um salto imenso em relação a outros
textos abolicionistas”, conta a professora Régia Agostinho da Silva, professora
da Universidade Federal do Maranhão e autora do artigo “A mente, essa ninguém
pode escravizar: Maria Firmina dos Reis e a escrita feita por mulheres no
Maranhão”.
Além de ter se lançado em um gênero literário sem precedentes no
Brasil – e dado as diretrizes para os romances abolicionistas que apareceriam
apenas décadas depois -, Firmina foi a primeira mulher a ser aprovada em um
concurso público no Maranhão para o cargo de professora de primário. Com o
próprio salário, sustentava-se sozinha em uma época em que isso era incomum e
até mal visto para mulheres. Oito anos antes da Lei Áurea, criou a primeira
escola mista para meninos e meninas – que não chegou a durar três anos, tamanho
escândalo que causou na cidade de Maçaricó, em Guimarães, onde foi aberta.
“A autora era bem conhecida para os maranhenses do seu tempo.
Professora, gozava de certa circularidade nos jornais. Apesar de mulher, não
era um pária social no período no qual viveu, mas claro que enfrentou o
silenciamento da sua obra”, conta Silva.
Esquecida por décadas, sua obra só foi recuperada em 1962
pelo historiador paraibano Horácio de Almeida em um sebo no Rio de Janeiro
– e, hoje, até seu rosto verdadeiro é desconhecido: nos registros oficiais da
Câmara dos Vereadores de Guimarães está uma gravura com a face de uma mulher
branca, retrato inspirado na imagem de uma escritora gaúcha, com quem Firmina
foi confundida na época. O busto da escritora no Museu Histórico do Maranhão
também a retrata “embranquecida”, de nariz fino e cabelos lisos.
O contato de Firmina com a literatura começou cedo, em 1830,
quando mudou-se para a casa de uma tia um pouco mais rica, na vila de São José
de Guimarães. Aos poucos, a jovem travou contato com referências culturais e
com outros de seus parentes ligados ao meio cultural, como Sotero dos Reis, um
popular gramático da época. Foi daí, e do autodidatismo, que veio o gosto pelas
letras.
Quando se tornou professora, em 1847, Firmina já tinha uma
postura antiescravista bem desenvolvida e articulada. Ao ser aprovada no
concurso para professora, recusou-se a andar em um palanque desfilando pela
cidade de São Luís nas costas de escravos. “Na ocasião, Firmina teria afirmado
que escravos não eram bichos para levar pessoas montadas neles”, afirma Silva.
Mas era praticamente impossível para uma mulher expor sua
opinião contra a escravidão – ainda mais uma mulher negra. Foi a estabilidade e
o respeito alcançados como professora que abriram espaço para Firmina lançar
seu primeiro livro, o romance Úrsula, no qual enfim publicaria seu
ponto de vista sobre o tema.
Diferente dos escritos de mulheres da época, o romance não era
“de perfumaria”, nem algo sem profundidade. Ao contrário: foi o primeiro livro
brasileiro a se posicionar contra a escravidão e a partir do ponto de vista dos
escravizados – antes até de Navio negreiro, de Castro Alves
(1880), e de A Escrava Isaura (1875), de
Bernardo Guimarães.
Em Úrsula, Firmina faz questão de mostrar a
crueldade de Fernando, senhor de escravos e vilão da história. Mas a pérola do
livro é a personagem Suzana, uma mulher escravizada que, frequentemente,
recorda-se de sua época de liberdade. “É horrível lembrar que criaturas humanas
tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à
sepultura asfixiados e famintos”, escreve, em determinado momento. Para Silva,
a forma é bastante característica de Firmina: “O escravo firminiano é, antes de
tudo, aquele que fala da África, que só reconhece a verdadeira liberdade, no
tempo em que vivia naquela África saudosa e nostálgica”.
Anos depois, quando já se firmara como escritora e professora –
e quando o movimento abolicionista já estava mais difundido no Brasil -, a
autora publicaria um conto ainda mais crítico, A escrava (1887), que
conta a história de uma mulher de classe alta sem nome que tenta, sem sucesso,
salvar uma mulher escravizada.
“Os tempos eram outros. Em 1887, a escravidão era
questionada no país inteiro. Em 1859, Maria Firmina dos Reis teve que usar um
tom mais brando em seu romance, pois queria conquistar os leitores para a causa
antiescravista. Leitores que, na sua imensa maioria, eram da elite e
provavelmente tinham escravos”, afirma a pesquisadora.
Com o passar dos anos, tendo apenas um livro publicado, o nome
de Firmina desapareceu. Para Silva, a insistência da autora em denunciar e
criticar a escravidão pode ter sido a causa do obscurantismo. “O assunto de que
tratava era insalubre demais, uma fala antiescravista em uma das províncias
mais escravistas do Brasil. Não a levaram a sério localmente, não queriam
ouvi-la falando. E ela não teve como levar seu texto para outros lugares.”
Pouco se sabe sobre outros possíveis textos de Firmina, sobre os
detalhes de sua vida ou sobre como uma mulher negra de origem pobre alcançou
tanto sucesso em pleno regime escravocrata. A própria biografia de Firmina,
escrita por José Nascimento Morais Filho em 1975, tem como título Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
Fonte: Revista Cult (UOL).
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